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O jornal do dia seguinte

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Sete e meia da manhã, casa sem café. Toca pra padaria. O jornal berra: Realengo.

Não resisto às notícias e ao cheiro da chapa. Logo no primeiro caderno, quase engasgo com o suco de laranja.

José Sarney empilha linhas lacrimosas; explica que esse tipo de coisa é anglo-saxônica, não faz parte da nossa cultura; cita Lorca; repudia o bullying; puxa o saco de Dilma; fala das famílias dos mortos, seus “filhos sem direito à esperança e ao futuro”.

Sarney entende bastante de negar futuro às crianças. Basta ver os indicadores sociais do Maranhão, seu feudo há 50 anos. E na última linha, Sarney pede a revisão do plebiscito pela continuidade da venda de armas.

Uma vez na vida, concordamos, e em outro lugar qualquer do jornal, o Ministro da Justiça garante “uma política permanente de desarmamento”. É, o Brasil precisa desesperadamente se desarmar - bandidos, polícia, cidadãos, espíritos. Não acontecerá.

Porque somos um país que tudo esquece, tudo perdoa e tudo atribui à misteriosa natureza, à inexplicável divindade. Acochambramos. Deixamos para lá. Passadas as enchentes, reconstruímos os barracos nos morros, desencanamos dos canos entupidos. Enterradas as crianças, pomos a desgraça na conta de um louco solitário e tudo continua como dantes.

Não acontecerá, porque gente como o governador Sérgio Cabral chama o assassino de “psicopata, animal”. Wellington, 23, está ali ao lado na fotinho três por quatro. Parece um menino.

Era estranho, dizem os conhecidos ao jornal. Não jogava bola. Nunca teve uma namorada. Não reagia quando os colegas o chamavam de retardado. A mãe o adotou com três dias de idade.

Era testemunha de Jeová, e o filho a acompanhava distribuindo panfletos. A irmã garante que era estranho, porque não tinha amigos e vivia no computador. Nenhuma menção a ser muçulmano, nem ser HIV-positivo.

Que diferença faz 24 horas.

diaseguinte okokokoko1 O jornal do dia seguinte

O dia seguinte na escola - Foto: Reprodução/Rede Record

Ao lado da coluna de Sarney, brada um colunista revoltado com o STJ, que colocou uma pá de cal na Operação Castelo de Areia. Foi a maior investigação da Polícia Federal contra fraudes em obras públicas.

Envolve rencas de políticos. Há montanhas de provas. O Supremo anulou todos os grampos (autorizados pela Justiça), material obtido com as quebras de sigilo bancário e telefônico, tudo que os policiais conseguiram nas buscas. Livrou a cara a bandidagem toda. Fim. Tudo continua como sempre foi. Deixa para lá.

Viro a página. Dor - fotos de oito meninas mortas, 12, 13, 14, 15 anos.

Não dá para ler isso, é tortura. Viro a página e Hélio Schwartzman - quanto tempo, camarada - explica como prevenir ataques como o que aconteceu em Realengo. Enfim algo realmente útil. No minuto que li a carta de Wellington ontem pensei, isso não tem nada a ver com religião e tudo a ver com falta de medicação.

Era um esquizofrênico, como tantos milhões que andam por nossas ruas e são gente boa, gente fina, produtiva enquanto tomarem seus remédios tarja-preta?

Desacostumei de jornal, e em um dia como hoje, é um campo minado a atravessar. Na capa do guia do final de semana, a estreia em número recorde de salas: Rio, o desenho animado.

Na última página, o milionésimo artigo primoroso de Carlos Heitor Cony e a frase: “Viver é isso: ir à frente de qualquer maneira, até que a frente se transformasse no fim de tudo”.

É.

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